Primeiro, veio a dor. Em março deste ano, o técnico em refrigeração Rodrigo Carlos da Silva Ferreira, de 32 anos, que mora em Codó, no Maranhão, recebeu a notícia que quase o tirou de órbita: o pai dele, José Carlos Ferreira, de 52 anos, havia morrido, horas depois de ter sido atingido por um tiro na virilha, em uma tentativa de assalto, em Teresina, Piauí.
O disparo tinha sido deflagrado por um adolescente, que permaneceu impune. Bastante ligado ao pai, Rodrigo pensou em “fazer justiça com as próprias mãos”. Chegou a descobrir a identidade e o endereço do assassino. Mas, tocado pelo que chama de “luz divina”, transformou a própria dor em esperança. Criou um projeto social, em que ensina jovens em vulnerabilidade social a consertar máquinas de lavar.
Inaugurado em maio, o programa – chamado Jornada do Técnico Aprendiz – é desenvolvido por Rodrigo de forma voluntária, sem ajuda de qualquer entidade pública ou privada e sem cobrar um centavo de seus aprendizes. As aulas ocorrem no galpão alugado, no bairro São Pedro, onde o professor mantém seu ponto de assistência técnica.
Os alunos são jovens, entre 14 e 18 anos de idade, de bairros humildes de Codó – município maranhense localizado a cerca de 300 quilômetros da capital, São Luís, e detentor de um Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) considerado bastante baixo (de 0,595, menor que o de países como Congo, Bangladesh e Timor-Leste).
- Refrigerista ensina jovens de baixa renda a consertar lavadoras
- Técnico em refrigeração morre após explosão em câmara fria
- Fundo de pesquisa homenageia guru da cadeia do frio
“Eu fiquei revoltado, consternado com o que aconteceu com o meu pai. Eu me revoltei, quis me vingar e estava planejando ir atrás, fazer justiça com as próprias mãos. Mas eu tive essa luz de Deus, que me botou nessa jornada”, disse Rodrigo.
“Se o adolescente que fez isso com meu pai tivesse tido uma oportunidade, uma mão para ajudar, pra ensinar um trabalho, ele não teria chegado a esse ponto de roubar, de tirar a vida de outra pessoa”, acrescentou.
Desde que começou a atuar como refrigerista, Rodrigo já pensava em ensinar o ofício a jovens. O incidente com o pai, no entanto, acelerou o processo. Juntou as poucas economias que tinha e comprou três máquinas de lavar quebradas, para usá-las nas aulas. Conseguiu algumas ferramentas extras, como chaves e alicates de pressão, imprimiu apostilas que baixou da internet e formou a primeira turma, com 12 alunos.
No início, os jovens se dividiam em três grupos, cada qual debruçado sobre uma máquina. Como não havia ferramentas para todos, alguns faziam os reparos, enquanto os outros assistiam. Ainda assim, ali Rodrigo percebeu que com força de vontade poderia fazer muito pelo próximo e para mudar a realidade em que vive. “Eles têm muito interesse. Querem aprender, mesmo. Isso só prova que os adolescentes, sejam de onde for, só precisam de oportunidade”, afirmou.
Expansão
Hoje, a Jornada do Técnico Aprendiz já chegou a sua quinta turma. Neste período, 41 jovens foram formados, com direito a recebimento de diploma de curso livre. A expansão se tornou possível, principalmente, a partir da publicação de matérias sobre o projeto no Blog do Frio e, posteriormente, em outros veículos de comunicação.
A publicidade atraiu cidadãos que, mesmo distantes do Maranhão, contribuíram com a iniciativa, doando equipamentos – como projetor e máquinas a serem consertadas – e ferramentas. As páginas que Rodrigo mantém no Facebook e sua rede de WhatsApp também têm ajudado a divulgar o projeto.
“Muitas pessoas acompanhavam a distância e me davam muita força, mas depois que o Blog do Frio fez a matéria que a coisa decolou”, disse Rodrigo.
“Eu não tinha ferramentas para dar as aulas do jeito que eu queria, mas depois da matéria comecei a receber ajuda. Veio um projetor, doado por um cara de São Paulo, vieram alicates multiúso, lona, kit de ferramentas para máquina de lavar, parafusadeira elétrica. Eu nunca imaginei que tivesse repercussão nessa proporção”, destacou.
O projeto chegou à Associação Pestalozzi de Codó, entidade com mais de quatro décadas de história e voltada a pessoas com necessidades especiais. Lá, Rodrigo ministrou um curso introdutório a dois alunos da instituição – Antônio, que tem surdez; e Maria, que apresenta dificuldade de fala. Nada disso impediu que os aprendizes se saíssem bem nas aulas.
“Por duas semanas, o Antônio passou todas as manhãs comigo. Foi a campo, me acompanhando nas assistências, pra ver como é o dia a dia, como o trabalho funciona. Foi muito bom. Eu senti que minha missão com ele foi cumprida”, avaliou o refrigerista.
A meta de Rodrigo é fechar 2019 superando a marca de 50 alunos formados. Entre os que já receberam seu certificado, alguns já veem a prestação de assistência técnica como uma profissão. É o caso de Lucas, de 17 anos, que participou da primeira turma da Jornada e que, hoje, atua como assistente-aprendiz de Rodrigo.
Para isso, o rapaz recebe uma ajuda de custo mensal, além de uma porcentagem em cada conserto que ajuda. “A reação dos pais é sempre muito gratificante. No dia da formatura, o pai do Lucas me abraçou, caiu aquela pequena lágrima. Eles sentem orgulho dos filhos”, disse o professor.
Além disso, o refrigerista também se prepara para oferecer cursos voltados a outro tipo de equipamento, cuja demanda cresce a cada ano: os aparelhos de ar condicionado. Por enquanto, ele conseguiu uma coleção de DVDs com aulas animadas e um aparelho para usar no curso.
Mas ainda faltam ferramentas específicas – como termômetros, cortadores de tubo e chaves de regulagem – para que Rodrigo consiga tirar a ideia do papel. Mesmo sem parcerias com a prefeitura ou com o governo do estado, ele sonha alto.
“O meu sonho, mesmo, é montar uma instituição de ensino em que eu possa atender todos os adolescentes da cidade, tudo bem certinho. Vou aos poucos, mas eu vou conseguir”, vislumbrou.
O início
Rodrigo nasceu em Teresina, no Piauí. Começou a prestar assistência técnica a refrigeradores e máquinas de lavar aos poucos e por acaso, graças ao incentivo do amigo Josivan Lopes. “Eu estava jogando bola e, quando ele precisava de ajuda, ele passava de moto e me pegava pra ir junto. Comecei lavando peças, separando ferramentas. No começo eu não gostava, mas depois comecei a ver o negócio como profissão”, disse.
Em 2011, Rodrigo, sua esposa, Cristiane Kelly, e filho do casal, Enzo Gabriel, se mudaram a Codó. Estabelecido na nova cidade, o refrigerista instalou seu ponto para prestar assistência técnica e pôs mãos à obra.
Por um período, a mulher o ajudou na instalação de ar-condicionado. Só parou quando estava prestes a dar a luz à filha, Maria Flor, que hoje tem um ano e nove meses. Com o trabalho, a família conseguiu comprar casa própria e uma moto. Para Rodrigo, no entanto, o mais importante é a certeza de estar fazendo a coisa certa.
“Eu tenho certeza de que, de onde meu pai estiver, ele está orgulhoso de mim”, disse Rodrigo, com a voz embargada. “Eu estou tirando foto de tudo, registrando tudo, para que meus filhos, quando crescerem, também possam ver o que eu fiz”, completou.