Não é de hoje que as mulheres têm dado contribuições relevantes para o desenvolvimento da pujante indústria global de aquecimento, ventilação, ar condicionado e refrigeração (HVAC-R), apesar da abismal lacuna de gênero existente na grande maioria das empresas e instituições de ensino e pesquisa do setor.
Uma das pioneiras mais notórias da área foi a engenheira mecânica Margaret Ingels (1892-1971). Ao receber seu diploma, em 1916, ela se tornou a segunda mulher graduada em engenharia nos EUA.
Após sua graduação na Universidade de Kentucky, ela trabalhou no departamento de engenharia da Companhia Telefônica de Chicago. Em 1917, entretanto, a jovem engenheira se mudou para Pittsburgh e entrou na Carrier. Foi aí que seu interesse pela área de climatização floresceu.
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Em 1920, Margaret Ingels se tornou a primeira engenheira pós-graduada dos EUA e, no ano seguinte, se juntou à equipe de pesquisadores do laboratório da ASHVE, entidade precursora da Associação Americana de Engenheiros de Aquecimento, Refrigeração e Ar Condicionado (Ashrae).
Durante aquela época, ela aperfeiçoou um novo aparelho portátil que media a quantidade de pó carregado de germes nas salas de aula e outros ambientes, ao realizar testes de campo sobre ventilação escolar para a cidade de Nova York, segundo registros da biblioteca da Universidade de Kentucky.
Depois disso, em 1931, Margaret Ingels voltou para a Carrier, onde estabeleceu uma parceria de longa data com o doutor Willis Carrier, engenheiro que concebeu, em 1902, o primeiro sistema de ar condicionado moderno.
Lá, ela ajudou a aperfeiçoar o psicrômetro de funda, instrumento científico utilizado para medir a umidade relativa do ar, e trabalhou até se aposentar.
Por sua estreita parceria com Willis Carrier e as atribuições dela na empresa, ela se transformou numa grande porta-voz não apenas da companhia, mas de toda a indústria de climatização.
Entre 1932 e 1952, a pesquisadora proferiu mais de 200 palestras para mais de 12 mil ouvintes, capturando com suas demonstrações sobre os princípios da refrigeração o interesse de muitas mentes jovens e, consequentemente, inspirando sua entrada no segmento.
Ela, enfim, foi mais do que uma simples engenheira competente, conforme atestam as suas 45 publicações técnicas em vários periódicos científicos. Um dos seus mais reconhecidos trabalhos – o desenvolvimento da escala de temperatura efetiva para incluir a umidade e o movimento do ar no cálculo para o conforto térmico humano – é uma das provas incontestáveis disso.
Entre suas contribuições para o setor, também está o excelente “The Father of Air Conditioning” (O Pai do Ar Condicionado, em tradução literal), livro no qual ela delineou alguns dos antecedentes da família de Carrier, a vida do inventor e seus esforços empresariais e científicos em prol do setor.
Pelo conjunto magnífico de sua obra, a cientista Margaret Ingels entrou para o Hall da Fama da Ashrae em junho de 1996, durante o tradicional encontro anual da entidade técnica global.
Rompendo estereótipos
Cada vez mais, as mulheres escolhem profissões ligadas às engenharias e conquistam, aos poucos, mais espaço em áreas que antes eram conhecidas como exclusivamente masculinas.
Entretanto, apesar dos avanços registrados nos últimos anos, a maioria dos países, industrializados ou não, está longe de alcançar a paridade de gênero nas disciplinas de ciência, tecnologia, engenharia e matemática (STEM) em todos os âmbitos do sistema educacional.
Segundo a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), as mulheres representam menos de 30% da força de trabalho de pesquisa e desenvolvimento em todo o mundo.
“As jovens devem estar expostas, ao máximo possível, aos campos, papéis e disciplinas de STEM desde sua idade mais precoce. E elas devem ser reconhecidas e apoiadas por terem interesse em matemática e ciência. Neste quesito, pais, professores e comunidade podem oferecer suporte e orientação”, avalia a engenheira química Barbara Minor, um dos mais proeminentes cérebros do HVAC-R na atualidade.
Graduada pela Universidade Bucknell, na Pensilvânia, em 1981, e principal líder técnica da equipe de cientistas da área de produtos fluorados da Chemours (ex-DuPont Refrigerantes), a influente pesquisadora sênior detém mais de 130 patentes nos EUA para fluidos refrigerantes, agentes de limpeza e propelentes de aerossóis.
Ela, inclusive, fez parte do primeiro grupo de mulheres na história de mais de 200 anos da DuPont a alcançar o cargo de nível técnico mais alto na empresa. “Foi muito gratificante fazer parte deste marco para as mulheres”, diz.
Embora seus pais tenham estimulado seu interesse pela ciência, Barbara Minor conta que seus verdadeiros inspiradores foram os professores do ensino médio que ficavam depois das aulas com os alunos para dar uma ajuda extra para quem queria passar nos exames de admissão da faculdade.
Durante sua passagem pelo ensino superior, ela ressalta que havia bem menos mulheres matriculadas em cursos de engenharia do que hoje.
“Mas minha sala de aula na universidade era incomum para a época, pois metade da turma era composta por mulheres. Foi maravilhoso poder aprender nesse ambiente e ter o apoio das colegas e dos colegas, uma vez que a grade de disciplinas era muito desafiadora”, lembra.
Ao longo dos últimos anos, a engenheira tem liderado o desenvolvimento de diversos fluidos refrigerantes de baixo impacto ambiental para aplicações de refrigeração e ar condicionado, incluindo o Opteon YF (R-1234yf), uma hidrofluorolefina (HFO) criada para substituir o hidrofluorcarbono (HFC) R-134a no segmento automotivo.
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“Sinto orgulho das minhas contribuições para o desenvolvimento da linha Opteon, um objetivo alcançado por uma grande equipe de profissionais dedicados da Chemours, que trabalhou com muito afinco para sintetizar, fabricar, fornecer e implementar com sucesso esses fluidos refrigerantes no mercado global”, revela.
De acordo com a cientista, a diversidade de gênero no mundo corporativo ajuda a estimular a inovação e traz uma perspectiva inteiramente diferente e dinâmica para o local de trabalho.
“As mulheres tendem a trabalhar realmente duro e são extremamente habilidosas em equilibrar e priorizar muitos deveres variados, porque muitas vezes elas também são as lideranças em suas casas”, salienta.
“É como alguém disse certa vez: ‘Se você precisa que algo seja feito, delegue esta tarefa a uma pessoa ocupada!’. Elas também funcionam bem em equipes, têm diferentes tipos de criatividade e estão dispostas a dedicar esforços em benefício da equipe ou organização”, acrescenta.
Membra ativa da Ashrae e do Instituto de Refrigeração, Aquecimento e Ar Condicionado (AHRI) dos EUA, Barbara Minor crê que o HVAC-R é um setor econômico que oferece chances reais para o desenvolvimento profissional das mulheres.
“Como estou há muito tempo nesta indústria, encontro cada vez mais mulheres bem-sucedidas, muitas das quais donas de seus negócios. E é fantástico ver como elas acham tempo para participar de organizações, liderar comitês, construir redes de relacionamentos etc. Enfim, há uma grande variedade de oportunidades para engenheiras, designers, líderes empresariais, técnicas e vendedoras, até porque o HVAC-R enfrenta, muitas vezes, escassez de mão de obra qualificada”, argumenta.
Para ela, uma profissional só é verdadeiramente bem-sucedida num mercado masculinizado quando seu gênero se torna irrelevante. “Todo mundo que se concentra no trabalho que precisa ser feito deve ser reconhecido e recompensado por suas realizações sem qualquer viés de gênero”, enfatiza.
No entanto, ela acredita que há casos em que o sexo da pessoa precisa ser considerado. “O fato de que apenas as mulheres podem dar à luz e necessitam de licença maternidade, por exemplo, não deve interferir no avanço de suas carreiras nem contribuir para a desigualdade salarial”, afirma.
“Fiquei muito feliz por ter conseguido trabalhar em tempo parcial em casa quando tive de criar meus três filhos após o nascimento deles e ainda ter feito progressos na minha carreira. Infelizmente, muitas mulheres não têm essa oportunidade”, completa.
Por essas e outras razões, pesquisadoras como Barbara Minor e empresas como a Chemours seguem rompendo o arquétipo tradicional do cientista: um personagem essencialmente masculino, que se dedica 24 horas por dia às suas pesquisas, fato que, segundo a visão estereotipada e ultrapassada de muitas organizações, impede as mulheres que desejam viver a maternidade de crescer em suas carreiras, e ainda frustra os homens que anseiam estar mais presentes na vida da família.
A busca pelo conhecimento
Segundo um relatório do Banco Mundial, a falta de autonomia feminina é um dos maiores entraves para o crescimento econômico da América Latina.
O documento revela que autonomia das mulheres proporciona diversos benefícios socioeconômicos, destacando que elas contribuíram com 30% da redução da pobreza na região durante a década passada, embora ainda ganhem menos e estejam menos presentes do que os homens no mercado de trabalho.
Ainda segundo a pesquisa, as mulheres brasileiras têm de estudar mais para exercer os mesmos cargos de liderança que os seus colegas homens. Mesmo assim, elas recebem salários menores.
Apesar deste cenário adverso, elas continuam buscando mais conhecimento. Hoje em dia, não é mais raro ver mulheres em faculdades de engenharia ou em salas de aula do Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai), por exemplo.
Elas também estão mais presentes em cursos, palestras e workshops promovidos por fabricantes de equipamentos de refrigeração e ar condicionado, como os treinamentos técnicos da Fujitsu na capital paulista e outras cidades brasileiras.
Uma delas é a designer de interiores Rose Tiesse. Além de ser graduada em administração de empresas, ela é eletricista instaladora formada pelo Senai.
Segundo a empresária, o preconceito de gênero ainda é comum na área, mas, no seu caso, é expressado apenas por parte dos instaladores e outros prestadores de serviços. “Os clientes gostam muito da minha presença nas obras e eu também gosto muito de estar nelas”, ressalta.
Aliás, atenção aos detalhes parece ser uma habilidade feminina muito requisitada no HVAC-R, conforme salienta a engenheira mecatrônica Rosana Soares de Souza Passos, supervisora de instalação, manutenção e vendas de ar-condicionado.
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“Os clientes ficam muito satisfeitos quando a gente vai a uma obra e informa todo o serviço que será feito, explicando por onde vai passar a tubulação, o local correto dos equipamentos, as dimensões e capacidades das máquinas, entre outros pormenores”, justifica.
Ela também tem paixão por aprender. “Eu sempre gostei de fazer cursos e adquirir conhecimentos”, afirma.
Sócia do marido numa pequena firma de instalação e manutenção de ar-condicionado, a enfermeira Edijane Maria da Costa e Silva também tem buscado mais qualificação para ajudar a alavancar o negócio da família.
Em sua avaliação, o HVAC-R é uma área rentável e próspera para quem é qualificado e sabe trabalhar, independentemente de gênero. “Tem muito serviço malfeito por aí que precisa ser feito novamente”, exemplifica.