As mulheres, as pessoas LGBTQIAP+ e outras minorias política e socialmente silenciadas não têm as mesmas oportunidades de crescimento profissional num ambiente corporativo dominado por homens brancos cis, em sua maioria.
A avaliação é da engenheira Carmosinda Santos, 38, um ícone da luta pela equidade de gênero e diversidade na indústria brasileira de aquecimento, ventilação, ar condicionado e refrigeração (HVAC-R, na sigla em inglês).
“Quantas mulheres você vê trabalhando por aí, tanto em campo quanto em cargos de liderança? São poucas, né?”, questiona.
“Praticamente, somos invisíveis. Quase não temos representatividade nas diretorias das empresas ou nas das entidades do setor”, afirma ela, lembrando que “conseguimos apenas alguns poucos avanços nos últimos anos”, graças a movimentos como o Elas no AVAC-R, do qual Carmosinda pode ser considerada a principal precursora e um exemplo digno para a compreensão do efeito que o sexismo, a misoginia e o assédio têm sobre as mulheres na indústria do frio e em outros setores econômicos como um todo.
Ademais, “vejo que muitas mulheres vivenciam a famosa síndrome do impostor, duvidando de suas competências e pondo em xeque a capacidade que temos, pois preconceitos sobre nossas habilidades como líderes, por exemplo, também nos impedem de termos uma chance de nos destacarmos em nosso mercado”, pondera.
E Carmosinda, ou Carmô, como muitos a chamam carinhosamente, diz isso com profundo conhecimento de causa. Lésbica, ela começou sua carreira na área há 14 anos, quando ainda era obesa. “Daí já dá para imaginar as situações mais do que constrangedoras pelas quais passei, né?”, questiona, mais uma vez.
“Comecei minha carreira como assistente comercial e vendedora técnica de peças, antes de ingressar em um grande fabricante do setor, onde sofri muito preconceito, tanto de colegas como de clientes. Para piorar, quando levava esses problemas a meus superiores, eles simplesmente me ignoravam”, conta.
“Cansei de escutar, àquela época, que, ‘se você está trabalhando num ambiente masculino, tem que aguentar as consequências disso’”, diz essa talentosa profissional nascida em São Paulo (SP) e criada no bairro do Itaim Paulista, na zona leste da cidade.
Mas doloroso mesmo, segundo ela, foi ter de ouvir de um colega, às vésperas de uma licença médica para a realização de uma cirurgia bariátrica – a fim de eliminar a única barreira que de fato a impedia para se dar bem em serviços em telhados e em outras áreas de acesso difícil –, que ele estava, na verdade, é torcendo para que ela não voltasse ao trabalho após o procedimento cirúrgico.
Contudo, mais que retrucar a palavras rudes e desmotivadoras como essas, Carmosinda tratou de passar seis anos dando duro diariamente para provar que poderia ser igual ou melhor do que seus colegas, independentemente de qualquer condição pessoal ou de qualificação profissional.
Afinal de contas, ela tinha nas mãos o diploma de técnica pela Escola Senai Oscar Rodrigues Alves e a prática de ter começado a atuar no setor três anos antes de se formar na conceituada instituição de ensino da zona sul da capital paulista.
No dia a dia, manutenção de chillers e máquinas de precisão lhe ocupavam boa parte do tempo, além de garantir uma credibilidade crescente, conquistada, em parte, às custas de remédios e tratamento, inclusive para depressão, infelizmente.
Mas tudo isso acabou ficando para trás, segundo Carmosinda, pois toda sua luta contra o preconceito e o assédio no setor já daria bons frutos nas experiências profissionais seguintes, “em duas empresas incríveis na forma de me tratar”, relembra.
Hoje, formada em engenharia mecânica pela Universidade Paulista (Unip), integrante do Conselho Regional dos Técnicos Industriais de São Paulo (CRT-SP) e membra ativa do capítulo brasileiro da Associação Americana de Engenheiros de Refrigeração, Ar Condicionado e Aquecimento (Ashrae), ela está prestes a completar um ano e meio numa das maiores indústrias do setor, onde comemora também não ter vivido nada constrangedor.
Isso, porém, não lhe basta, fazendo com que se mantenha à frente do coletivo Elas no AVAC-R, nascido a partir de sua antiga intenção de fazer “alguma coisa para mudar uma grave situação” que ela própria tão bem conhece.
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“Hoje, as empresas estão olhando mais para essas questões de gênero, diversidade e inclusão no mundo todo. Trata-se de um movimento global e que ninguém vai parar”, comemora Carmosinda, para quem ainda resta um longo caminho rumo à equidade na indústria.
“As próprias mulheres precisam fazer sua lição de casa nesse sentido”, defende a refrigerista, ao salientar que ainda “falta um sentimento de sororidade” entre a mão de obra feminina no setor.
Como prova disso, ela aponta a falta de respeito a lideranças femininas, ainda vistas pelas próprias colegas como concorrência, “em vez de algo capaz de somar forças em nome de uma causa maior, que aflige a todas”.
Já aos homens, o recado de Carmosinda é direto, como manda seu próprio jeito extrovertido de ser: “Eles precisam entender que, independentemente do sexo ou da orientação sexual, todos temos nossa capacidade intelectual, que é aprimorada pelos estudos, além do próprio aprendizado no dia a dia”.
Novamente, ela reforça que as entidades do setor ainda são predominantemente masculinas, o mesmo ocorrendo nos departamentos de instalações e obras dos fabricantes. “Nunca vi mulheres em postos de liderança nesses lugares”, constata.
A maioria das mulheres ainda atua nas áreas administrativas, de projetos, vendas, mas não em setores operacionais, lecionando, desenvolvendo atividades em campo ou coordenando obras, “onde técnicas e mecânicas você ainda conta nos dedos”, diz ela.
Embora ela se diga decepcionada com o ritmo da mudança desse quadro no setor, Carmosinda demonstra clara disposição para continuar sendo uma das frentes de resistência para mudar essa triste realidade, como uma verdadeira ‘rainha do AVAC-R’, tal como é chamada por muitos de seus seguidores nas redes sociais, ambiente no qual também já foi desrespeitada.
“Mas muitos dos que fizeram isso e me encontraram por aí em feiras e outros eventos já reconheceram que pisaram na bola e me pediram desculpas por isso”, revela.
“Sempre, por onde ando, luto pela importância de se respeitar o profissional técnico, a vida acadêmica, a formação continuada e o registro em conselho de classe”, acrescenta.
Tudo isso atuando num mercado que ela define como sendo ainda “extremamente preconceituoso, patriarcal, intolerante e repleto de homens homossexuais que sequer têm a coragem de assumir tal condição”, conclui Carmô.